O Corpo como Capital de Socialização

Um corpo não é apenas um corpo, é também um entorno; mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o corpo é também estruturado pelas intervenções que nele são operadas; a imagem que dele é produzida e os sentidos que nele são incorporados. Pensar o corpo como um produto da cultura é mutuamente um desafio e uma necessidade (MAUSS, 2003)

Contudo, enquanto “objeto” de conhecimento, o corpo recebeu atenção secundária no campo da Sociologia e da Antropologia (LE BRETON, 2012; RONDINELLI, 2013). Os movimentos dos ritos, as pinturas e os adornos corporais são apontados e analisados nos estudos clássicos exclusivamente como coadjuvantes no estudo das instituições fundamentais nos grupos sociais. Como discorre Rondinelli (2013), o conjunto de hábitos, costumes, crenças e tradições que caracteriza uma cultura também se refere ao corpo: há uma construção social e cultural, fazendo com que haja um corpo típico para cada sociedade, gênero e sexo.

De acordo com Bourdieu (1999), uma prática fundamental para o trabalho de construção de corpos sexuados, é a dos ritos que marcam a separação entre homens e mulheres, por ele chamados de ritos de instituição, os quais desempenhariam um importante papel na socialização por gêneros, principalmente na somatização progressiva que ele denominará dominação masculina. O corpo segue assim, sendo o lócus dessa dominação, uma forma de violência simbólica.

Criam-se, desta forma, corpos distintivos, que operam como espécies de capital (econômico, cultural, social, político, simbólico, físico, entre outros). Capital, na perspectiva de Bourdieu (2001), são os poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado. A cada campo corresponde uma (ou mais de uma) espécie de capital particular.

Baseada nesta teoria, Goldenberg (2015) cria o conceito de corpo como capital. Como defende a antropóloga, em determinadas culturas, como na brasileira, determinado modelo de corpo é uma riqueza, talvez uma das mais desejadas pelos indivíduos das camadas médias urbanas e também das camadas mais pobres, que percebem seu corpo como um importante veículo de ascensão social. Nesse sentido, “além de capital físico, o corpo é, também, um capital simbólico, um capital econômico e um capital social” (p. 9). O que para Bourdieu seria um corpo distintivo, é também um capital: um corpo jovem, magro, em boa forma, sexy. É um corpo que distingue como superior aquele que o possui: um corpo conquistado por meio de muito investimento financeiro, trabalho e sacrifício.

Considera-se que a incorporação da dimensão cultural simbólica ao estudo do corpo pode ampliar os horizontes para entender o ser humano como construído e construtor de uma cultura relacionada aos aspectos corporais, na medida em que o próprio comportamento é uma ação simbólica composta por um conjunto de sentidos e significados (MATTOS, 2012).

Em seus estudos sobre o corpo na contemporaneidade, Le Breton (2013) define o corpo do homem moderno como fator de individuação e uma construção simbólica, não uma realidade em si[1]. Como argumenta, “o corpo não é uma natureza. Ele não existe. Nunca vimos um corpo: o que vemos são homens, mulheres” (p. 13) que estão ali, trabalham, movimentam-se e comunicam-se.

O autor destaca os anos 1960 como marco de um novo imaginário do corpo, onde esse, agora mais exposto, assume novo posicionamento social com contribuição direta das mídias, que, segundo ele, reverberou um novo imaginário do corpo por conta da crise de identidade causada pelo feminismo, pela revolução sexual e pela body-art.

 

O corpo ocidental é o lugar da censura, o recinto objetivo da soberania do ego. Ele é a parte insecável do sujeito, o ‘fator de individuação’ em coletividades nas quais a divisão social é admitida. […] Em nossas sociedades ocidentais, o corpo é, portanto, o signo do indivíduo, o lugar de sua diferença, de sua distinção; e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, está frequentemente dissociado dele, devido à herança dualista que pesa sempre sobre sua caracterização ocidental (LE BRETON, 2013, p. 9).

 

O referido autor afirma que em nossa sociedade contemporânea o corpo ganhou status de acessório, um objeto totalmente maleável.

 

O homem ocidental descobre-se um corpo, e a novidade segue seu curso, drenando discursos e práticas revestidos da aura das mídias. O dualismo contemporâneo opõe o homem ao seu corpo. As aventuras modernas do homem e de seu duplo fizeram do corpo uma espécie de alter ego. Lugar privilegiado do bem-estar, (a forma), do bem-parecer (as formas, body-building, cosméticos, dietéticas etc.), paixão pelo esforço (maratona, jogging, windsurf) ou pelo risco (escalada, “a aventura” etc.). A preocupação do homem moderno com o corpo no seio de nossa “humanidade sentada” é um indutor incansável de imaginário e de práticas (LE BRETON, 2013, p. 10).

 

Nessa prática, o corpo é um sinal. É um cartão de visitas de carne e osso, escrito com roupas e formas que se tornam uma série de sinais distintivos. É uma verdadeira apresentação de si próprio por meio da aparência. Torna-se um “espelho, um outro eu (…) quase um parceiro” (LE BRETON, 2012, p. 13).

Como fator de individuação (LE BRETON, 2013) faz a passagem do corpo objeto para o corpo sujeito. O corpo pode ser modelado para atingir sua máxima capacidade, externalizando simbolismos pessoais e sociais. “O indivíduo torna-se sua própria cópia, seu simulacro, pela mediação do código genético presente em cada célula” (LE BRETON, 2013, p. 249). O corpo destaca-se do sujeito e, no limite, pode produzir e reproduzir sozinho sua aventura pessoal, uma vez que, estabelecido como outro homem, reúne todas suas características, qualidades e imperfeições pessoais.

Com essa percepção, Le Breton (2013) aponta o corpo cada vez mais transformado em uma espécie de máquina, imune à doença, à deficiência física e até mesmo à morte.

Somando a esta discussão, Sabino (2004) argumenta que em uma cultura na qual o entretenimento, o consumismo e a publicidade tornam-se pilares existenciais, a espetacularização passa a constituir o cotidiano dos indivíduos preocupados com seu marketing pessoal. O corpo, além de representar a verdade desse indivíduo, é também sua vitrine. A imagem por ele exposta apresenta-se como suposta via para o sucesso ou o fracasso individual e de suas ações.

Considera-se que a hipervalorizarão da construção corporal, seja por meio de musculação, cirurgias estéticas ou dietas, ganhou um espaço privilegiado e de destaque na cultura ocidental na era pós-industrial. Como aponta Baudrillard (1995), o culto higiênico, dietético e terapêutico com que se rodeia o culto ao corpo e à beleza, a obsessão pela juventude, pela elegância, pela virilidade ou pela feminilidade, os regimes e as práticas sacrificiais, testemunham que o corpo passou a ser um objeto de investimento para a salvação. “O corpo substitui literalmente a alma, nessa função moral e ideológica” (BAUDRILLARD, 1995, p. 157).

Goldenberg e Ramos (2007) apontam que, no Brasil, sob a moral da boa forma, o corpo trabalhado, cuidado, sem marcas indesejáveis (rugas, estrias, celulites e manchas) e sem excessos (gordura e flacidez), recuperando e se aproximando do padrão de beleza dos deuses greco romanos, é o único que mesmo sem roupas, está decentemente vestido. “Um corpo de homem, se é musculoso, não está jamais verdadeiramente nu (COURTINE, 1995, p. 96).

Pode-se pensar que o corpo pode ser muito mais importante do que a roupa por ser a verdadeira roupa. É o corpo que deve ser moldado, exibido e manipulado, trabalhado e costurado, enfeitado, produzido e imitado. Como defende Goldenberg (2015), “é o corpo que entra e sai de moda. A roupa é apenas um acessório para a valorização e a exposição desse corpo da moda (p. 47)”. Constrói-se, assim, o conceito de corpolatria, ou seja, a tendência, ou paradigma, de culto ao corpo enquanto objeto de consumo simbólico.

Criou-se um corpo distintivo, aprisionado e domesticado para atingir a “boa forma”, um corpo que distingue como superior àquele que o possui, um corpo conquistado por meio de muito investimento, sacrifício e trabalho (GOLDENBERG, 2015). Multiplicam-se os casos das chamadas doenças da beleza, dos distúrbios alimentares e das cirurgias plásticas, numa tentativa incansável dos indivíduos de se livrarem da indignidade corporal.

É interessante ponderar a relação entre o corpo ‘sarado’ (cujo termo, associado à doença, é utilizado para que aquele que está curado ou que sarou de algum mal) e o corpo ‘saudável’. O horror à gordura pode ser relacionado ao temor da doença. A busca do corpo ‘sarado’ funciona, para os adeptos do atual culto à beleza e à boa forma, como uma luta contra a morte simbólica imposta àqueles que não se disciplinaram para enquadrar seus corpos aos padrões exigidos (GOLDENBERG E RAMOS, 2007).

O mito da magreza, da boa forma e do corpo ideal é o Graal moderno das sociedades ocidentais e o motor da anorexia, da bulimia e da ortorexia na medida em que essas patologias devem ser vistas como doenças sociais. Nas considerações de Marzano – Parisoli (2002), a anoréxica e a bulímica não são simplesmente pessoas doentes, mas nos dão também esclarecimentos muito importantes e, ao mesmo tempo, muito dramáticos sobre a cultura e as sociedades contemporâneas. “De fato, parece que são elas que melhor aprenderam as regras culturais buscando construir-se pela domesticação de seu corpo segundo as regras corporais, como comprovam as práticas de algumas agencias de manequins que chegariam a utilizar as clínicas especializadas no tratamento da anorexia para recrutar seus futuros manequins” (p. 61). A anorexia e a bulimia são uma expressão da assimilação das regras contemporâneas (acompanhadas de outras patologias da beleza e do dismórfico) e também a manifestação mais radical da falência do modelo contemporâneo.

Pesquisas da Organização das Nações Unidas mostram que o Brasil tem o maior consumo mundial per capita de remédios para emagrecer, sendo o país líder no consumo de moderadores de apetite. O consumo diário de inibidores de apetite é de 12,5 por mil habitantes; nos Estados Unidos é de 4,8. Ainda nessa reflexão, pesquisas mundiais da Unilever (Dove) indicaram que 63% das brasileiras querem fazer cirurgia plástica (maior índice mundial da pesquisa), enquanto que 89% das brasileiras querem mudar algo no corpo (GOLDENBERG, 2015).

Nesse processo de responsabilização do indivíduo pelo seu corpo, a partir da autoconstrução, a mídia e, especialmente, a publicidade têm um papel fundamental. O corpo virou o maior objeto de consumo, vendendo aquilo que Bourdieu (1989) chama de ilusões bem fundamentadas, as quais tomam como referência o discurso científico de especialistas e prometem perfeição estética, desde que sejam cumpridas, rigorosamente, todas as suas orientações (GOLDENBERG E RAMOS, 2007). Isso posto, considera-se que a corpolatria brasileira vem em sobreposição ao significante “corpo”, modificando ativamente a aparência física dos atores sociais, para que ela não forneça apenas informações espontâneas e imprevisíveis como também informações intencionais, fabricadas e artificiais. As representações das aparências nas cenas sociais mostram que a semiótica da aparência muscular tornou-se hoje, no Brasil, quase mais significativa, tanto econômica quanto socialmente, do que as da cor e as do gênero (MALYSSE, 2002).

Elias (1990), em O processo civilizador, fornece uma pista para pensar a paradoxal instauração dessa ‘moral estética’ discorrida acima. Para defender a tese de que, no curso do processo civilizador dos costumes, os momentos de suposto relaxamento moral ocorrem dentro de contextos quando um alto grau de controle é esperado dentro de um padrão ‘civilizado’ particular do comportamento, o autor utiliza como exemplo o uso dos trajes de banho: os corpos mais expostos exigiram por parte de homens e mulheres um maior autocontrole, no que diz respeito às suas pulsões, do que quando o pudor os mantinha escondidos.

Nessa proposição, a aparente liberação dos corpos, sugerida por sua atual onipresença na publicidade, na mídia e nas interações cotidianas, tem por trás um processo civilizador que se legitima por meio dela. A exposição do corpo, atualmente, não exige dos indivíduos apenas o controle de suas pulsões como também o autocontrole de sua aparência física.

Lipovetsky (2000) traz grandes contribuições a essa discussão analisando como “a febre da beleza e eterna juventude” exerce uma tirania implacável sobre os corpos. Assim, aponta a cultura do consumo como incentivadora de indivíduos voltados a si e critica as proporções que a moda adquiriu na pós-modernidade como um dos principais organizadores sociais, em suas palavras “pedra angular que enaltece o efêmero”.

 

A obsessão da magreza, a multiplicação dos regimes e das atividades de modelagem do corpo, os pedidos de redução de culotes e de modelagem até dos narizinhos arrebitados testemunham o poder normalizador dos modelos, um desejo maior de conformidade estética que se choca frontalmente com o ideal individualista e suas exigências de personalização dos sujeitos.” (LIPOVETSKY, 2000, p. 143)

 

Considerando a moda como extensão do corpo, o autor observa que os instrumentos usados pela publicidade apelam pela égide do desejo, unindo mercadorias a estilos de vida e estimulando o consumo por motivações simbólicas e não exclusivamente funcionais. “Necessidade e desejo são trabalhados pela indústria da publicidade a fim de induzir a compra ‘Você merece’, ‘Você precisa’. Aludindo assim, produtos a estilos de vida onde compra-se o sonho, o simbólico” (LIPOVETSKY, 2009, p. 122). Como trabalha em sua obra, Lipovetsky (2000) expõe que se criam corpos de consumo e para o consumo.

A normalização feminina, por exemplo, fica clara da seguinte maneira: o padrão ‘aceitável’ para a moda tradicional vai até o 44, a partir disso, há fabricação de roupas e marketing especificamente para esse público. Como aponta o autor, de forma contraditória, quanto mais é imposto um ideal de autonomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais de corpo.

Por conseguinte, postula-se, com base na literatura apresentada, que, no Brasil, o desenvolvimento do individualismo e a intensificação das pressões sociais das normas do corpo caminham juntos. O habitus ao qual se inserem os corpos e as práticas corporais destinadas a esses visa um fim em comum: um fim de pertencimento a um padrão maior. Vive-se, então, em um equilíbrio de antagonismos: um dos momentos de maior independência individual para a tomada de decisões a nível sexual, profissional e relacional, mas também aquele em que um alto grau de controle é imposto em relação aos corpos (GOLDENBERG, 2015).

 

Este artigo foi escrito pelo Prof. Dr. Renato Santos.

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[1] Para aprofundamento consultar: DURKHEIN, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes. 1996.

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Referências Bibliográficas:

BAUDRILLARD, J. Para uma crítica da economia política do signo. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

BOURDIEU, P. Conferência do Prêmio Goffman: a dominação masculina revisitada. In: LINS, D. (org.) A dominação masculina revisitada. Campinas: Papirus, 2001.

ELIAS, N. O processo civilizador: formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1990.

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GOLDENBERG, M.; RAMOS, M. S. A civilização das formas: o corpo como valor. In: GOLDENBERG, M (org.). Nu & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19-40.

LE BRETON, D. A sociologia do corpo. São Paulo: Editora Vozes, 2012.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus Editora, 2013.

LIPOVETSKY, G. A terceira mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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MALYSE, S. Em busca dos (H)alteres ego: olhares franceses nos bastidores da corpolatria carioca. In: GOLDENBERG, M (Org). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002. p.79-137.

MARZANO – PARISOLI, M. M. Pensar o corpo. Petrópolis, Vozes, 2002.

MATTOS, R. Sobrevivendo ao estigma da gordura. São Paulo: Vetor, 2012.

MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003.

RONDINELLI, P. A construção da masculinidade a partir de tabus corporais: considerações no campo da saúde. 2013. Tese [Doutorado] – Programa de Pós Graduação Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

SABINO, C. O peso da forma. Cotidiano e uso de drogas entre fisiculturistas. Tese [Doutorado] – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

 

Sobre o Autor:

Renato Caio Silva Santos

Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós Doutorando em Filosofia pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Mestre e Doutor em Ciências e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Aprimoramento em Psicologia Hospitalar pelo Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Especialista em Sexualidade Humana pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Especialista em Neuropsicologia pela Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo. Responsável técnico e fundador da RSantos – Centro de Estudos de Psicologia e Neurociências. Atua em consultório e como professor de graduação e pós graduação.