Considerações Teóricas sobre Adoecimento, Morte e Lutos decorrentes do Câncer Infantil

INTRODUÇÃO

Toda doença é um capitulo na biografia de um individuo, e, de certa forma, apresenta um sentido na história da pessoa, que é dado, conforme as determinantes históricas da vida emocional do paciente. Além do risco da morte, o paciente vivencia diversos lutos decorrentes da doença e das perdas advindas desta.

O câncer é uma doença que se destaca para além das outras, devido à premissa popular de significado de morte. Possivelmente, devido a esta crença, o câncer é quase sempre atribuído a uma doença de adultos. Em todas as fases da vida, porém principalmente na infância, o diagnóstico de câncer é vivido como uma enfermidade cruel e secreta. Uma fatalidade que elimina o futuro e aproxima a criança de uma possibilidade de morte completamente inesperada.

Derivado da palavra grega Karkinos (caranguejo), a simbologia ao redor da morte é notada, inclusive, na etiologia da palavra câncer. Esta associação entre a doença e o caranguejo, feita primeiramente por Hipócrates – pai da medicina, foi usada devido à descrição das tumorações que pareciam invadir os tecidos vizinhos, de modo parecido com as patas de um crustáceo. Este animal, de caráter noturno e que vive quase sempre em profundidade e invisível, se desloca de maneira rápida e característica: de lado, mal coordenado e imprevisível. Quando aprisiona uma presa, o caranguejo apodera-a em suas presas e a tortura até a morte.

 

CÂNCER INFANTIL

O termo câncer é utilizado genericamente para representar um conjunto de mais de 100 doenças, incluindo tumores malignos de diferentes localizações, que têm em comum, o crescimento desordenado de células, que invadem tecidos e órgãos, podendo espalhar-se para outras regiões do corpo. De acordo com estimativa realizada pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), no biênio 2008/09, seriam diagnosticados cerca de 9.890 casos por ano em crianças e adolescentes com até 18 anos de idade (INCA, 2008).

No âmbito mundial, o câncer representa de 0,5% a 3% de prevalência entre as crianças, se comparadas à população em geral. No Brasil, a partir dos dados obtidos do registro de câncer de base populacional, observou-se que o câncer infantil varia de 1% a 4,6%. Nos Estados Unidos, o câncer infantil está entre as principais causas de mortalidade na faixa etária de 1 a 14 anos, enquanto que no Brasil as neoplasias malignas apresentam-se como terceira causa de morte, sendo superadas por mortes decorrentes de causas externas e acidentes. No Estado de São Paulo, essas estatísticas mudam uma vez que os tumores são a primeira causa de óbito entre 5 e 14 anos (Borges et al, 2009).

Andréa (2008) relata que, os tumores infantis se diferenciam dos adultos, pois, enquanto as neoplasias infantis têm origem nos folhetos embrionários, mesoderma (leucemias, linfomas, tumores renais e sarcomas) e ectoderma (no sistema nervoso central e sistema nervoso simpático), os tumores adultos, têm, em sua grande maioria, origem no ectoderma ou endoderma (carcinomas, tumores de mama, do colo do útero, estômago, intestino e pulmão).

Entre as crianças, os tipos mais freqüentes de neoplasias são as leucemias, tumores do sistema nervoso central, neuroblastomas, tumor de Wilms, tumores ósseos e os linfomas. A leucemia é o mais comum entre menores de 15 anos, principalmente a leucemia linfocítica aguda (LLA). Os tumores do sistema nervoso central têm como seus tipos mais comuns o astrocitoma e o meduloblastoma; predominam no sexo masculino, ocorrem principalmente em crianças menores de 15 anos, com um pico de idade de 10 anos, e representam cerca de 20% dos tumores infantis. Os linfomas são responsáveis pelo terceiro tipo de neoplasias malignas pediátricas, com destaque para o não Hodgkin (Valle & Ramalho, 2008; Mutti, Paula & Souto, 2010).

Do ponto de vista clínico, os tumores pediátricos apresentam menores períodos de latência, e em geral, crescem rapidamente e são mais invasivos. Porém, respondem melhor ao tratamento e são considerados de bom prognóstico. Atualmente, 70% das crianças acometidas de câncer podem ser curadas se diagnosticadas precocemente, e se tratadas em centros especializados. A melhora das taxas de sobrevida e cura das neoplasias da infância é reflexo, sobretudo do diagnóstico precoce, e do avanço na descoberta e implementação dos medicamentos oncológicos (INCA, 2010).

O tratamento dos tumores infantis compreende três modalidades principais: a quimioterapia – uso de substâncias químicas para o tratamento de doenças causadas por agentes biológicos, a radioterapia – uso terapêutico das radiações ionizantes, e a cirurgia. Cada uma dessas modalidades é aplicada de forma individual, de acordo com a extensão da doença e do tipo de tumor. Entretanto, dificilmente um paciente passa ileso pelo tratamento.

De acordo com Lopes, Camargo e Bianchi (2000) e Perina, Mastelaro e Nucci (2008), com o aumento da taxa de sobreviventes de câncer, se tornaram capazes os estudos que visam o impacto dos efeitos tardios do tratamento na qualidade de vida dos pacientes. Além dos comprometimentos físicos como, problemas de crescimento e hipotireoidismo, devido à radioterapia, insuficiência renal, cardimiopatia e perda da audição, devido à quimioterapia, os indivíduos com histórico de câncer na infância apresentam 10 a 20 vezes maior risco de desenvolvimento de um segundo câncer em relação à população geral. De fato, 3 a 12 % das crianças desenvolvem novos tumores nos primeiros 20 anos. Os autores também relatam uma piora da função psicológica, que pode ser secundária a toxicidade do tratamento ou atribuída a desmotivação por perda de energia, e uma diminuição do desempenho escolar e social, que podem resultar de déficits neuropsicológicos atribuídos à toxicidade da quimioterapia ou do isolamento que o paciente sofreu durante a doença e seu tratamento.

Após o término do tratamento, os acompanhamentos médicos e retornos ao hospital são freqüentes, principalmente nos dois primeiros anos. As chances de recaída da doença vão se tornando menores na medida em que os anos passam, sendo que os maiores índices de recaída ocorrem no primeiro ano pós tratamento. Esses retornos servem não somente para verificar se a doença está controlada, mas também, para verificar e reparar os possíveis danos causados pelo tratamento. Hoje o câncer é considerado uma doença crônica, o que resulta grande numero de pacientes curados ou vivendo muitos anos com a doença, podendo controlá-la e tratando os sintomas.

 

A CRIANÇA HOSPITALIZADA

Como já abordado, o paciente oncológico, independente de sua idade, confronta-se, a partir do momento do diagnóstico, com uma nova realidade, experienciada até então, somente por outras pessoas. Com o inicio do tratamento, é preciso conviver com freqüentes idas a clinicas e hospitais, internações, sessões de quimioterapia e/ou radioterapia, e inúmeras transformações corporais e no dia-dia. Além de tudo isso, os pacientes passam a conhecer novos conceitos, incorporando em seu vocabulário palavras de domínio médico. Eles entram em contato com a sua dor e com a dor de outros pacientes, confrontam-se com a impotência, com a necessidade de apoio, as mudanças nos papéis sociais e a realidade da morte. O paciente adoece como um todo. Assim, o adoecimento se mostra como parte de um processo global, que não se restringe apenas às manifestações orgânicas, já que, exige muito da capacidade de adaptação do indivíduo, que pode provocar diversas reações e até respostas que interfiram no tratamento.

No caso das intervenções pediátricas, além da exposição a procedimentos médicos invasivos, a hospitalização também sujeita a criança e seus familiares a situações estressantes. No inicio do tratamento, e ainda sob o impacto do diagnóstico, a criança é afastada de sua casa, escola, amigos e familiares e é inserida em um novo ambiente, com o qual ela não tem intimidade, e passa a conviver com pessoas estranhas, em um lugar rígido e com a freqüente imposição de uma rotina.

De acordo com Torres (2002), o momento da hospitalização, é vivido por muitas crianças, como uma reedição do momento da separação do recém nascido com a mãe; já que, no nascimento, a criança perde o ambiente seguro e protetor do útero e é lançada em um ambiente imprevisível e desconhecido.

Como explicam Valle e Ramalho (2008), o curso do desenvolvimento da criança pode ser alterado devido à doença. Muitas vezes, a superação das etapas da doença podem se sobrepor às demandas originadas no processo de desenvolvimento normal. Entre 0 e 2 anos de idade, o bebê necessita da presença física e emocional dos pais para a aquisição de segurança em si próprio e da capacidade dos órgãos de responder a impulsos e anseios; assim a separação da mãe torna-se a experiência principal da hospitalização. À medida que a criança cresce, e aumentam suas habilidades motoras, ela desenvolve autonomia e autocontrole. Entre os 3 e os 5 anos de idade, as crianças acreditam que há regras para a manutenção da saúde, e se sentem culpadas quando adoecem. Elas podem apresentar altos níveis de estresse e ansiedade durante procedimentos médicos, podendo se sentir confusas, ameaçadas ou punidas. Quando chegam ao período da escolaridade formal, entre 6 e 11 anos, o adoecimento pode causar danos no relacionamento com outras crianças e adultos, pois, as constantes idas ao médico, internações e mudanças corporais – devido à doença e ao tratamento, podem levar os colegas a evitar e a isolar a criança doente. Estes comportamentos tendem a levar a criança a se sentir inadequada perante outras, e resulta em baixa autoestima.

Entretanto, todo esse processo pode ser amenizado através do fornecimento de certas condições que mantenham a possibilidade de um desenvolvimento saudável, tais como: presença e afeto de familiares, disponibilidade afetiva por conta dos trabalhadores da saúde, fornecimento de informações relativas ao tratamento para a criança, atividades recreacionais, entre outras. Além dessas condições, a idade da criança, o tempo de internação, a história da doença, hospitalizações anteriores e estilos parentais e familiares, devem ser analisados durante a assistência à uma criança hospitalizada, pois tendem a interferir no tratamento

Quanto ao significado dado à doença e à hospitalização, Cagnin, Liston e Dupas (2004) explicam, em pesquisa realizada com crianças e adolescentes de 9 a 15 anos, que estes tendem a mesclar significados conhecidos sobre a doença com fantasias imaginárias. A criança traz a doença para o seu mundo e emite significados condizentes com a sua capacidade de compreensão e com a experiência vivida com o câncer. Apesar de saberem sobre a sua doença, algumas vezes não conseguem avaliar a gravidade do seu caso em particular, por isso acreditam encontrar-se acometidas por um tipo menos invasivo e não recidivante, adotando comportamentos de defesa contra as ameaças. As autoras ainda indicam que a criança doente pode passar a atribuir causas externas a sua enfermidade, não apenas relacionadas ao meio ambiente e aos hábitos ou costumes próprios do ambiente sócio-cultural, chegando a muitas vezes acreditar na transmissão da doença do animal para o homem.

 

LUTO INFANTIL

Considera-se que a situação de adoecimento implica ao paciente a elaboração de um processo de luto, seja pela sua vida antiga, ou pela perda de atributos físicos, intelectuais e sociais. Embora as doenças caracterizam-se pelo desconforto e pela alteração de função que causam, o luto pode não causar dor física, mas causa desconforto e geralmente altera as funções globais do individuo. Portanto, para abordar diretamente as questões relacionadas à doença e ao tratamento é necessário entender as questões ligadas ao luto e à morte.

Parkes (1998) e Bromberg (2000) explicam que o luto é uma reação normal em resposta a um stress devido ao rompimento de uma relação significativa. Segundo Parkes (1998), o luto é a expressão do descontentamento para a privação e perda de alguma pessoa, ou objeto, considerado essencial e que fora anteriormente oferecido. Neste ponto, reputa-se que não somente o adoecimento implica na vivência de vários lutos físicos e emocionais, mas toda a situação da hospitalização, da perda de atividades cotidianas e da perda de vínculos afetivos e familiares afetam o paciente, forçando-o a elaborar e a vivenciar o processo de luto.

Embora para Anna Freud (1936, apud Bowlby, 2006) a criança não pode elaborar o luto, já que de acordo com a sua teoria do desenvolvimento do ego, ela não poderia aceitar o principio de realidade ou efetuar mudanças em seu mundo interno, sendo governada somente pelo principio do prazer, Bowlby (2006) partindo do conceito de permanência objetal desenvolvido por Piaget e da observação de crianças de doze meses a três anos, descreveu três fases do enlutamento infantil, similares às observadas no processo de luto adulto:

  • Protesto: pode durar poucas horas até uma semana. A criança sente muita angústia com a ausência da figura parental e procura reavê-la de todas as formas; chora fortemente, rejeita qualquer figura substituta, embora se apegue a alguém desesperadamente.
  • Desespero: a busca por reaver a mãe continua, mas o comportamento da criança sugere perda de esperança. Os movimentos que antes eram ativos diminuem e cessam, podendo ocorrer choro monótono e intermitente, abatimento e inapetência.
  • Desligamento: a criança deixa de rejeitar a pessoa substituta, passa a comer mais e a brincar e interagir com outras crianças. Esporadicamente sorri e é sociável, porém, quando recebe visitas, passa a reagir com indiferença, chegando até mesmo a apresentar dificuldades para reconhecê-las, permanecendo distante e apática. O comportamento nesta fase se reorganiza com base na ausência permanente da pessoa.

 

O estudo deste comportamento demonstrado pelas crianças indica que a figura de apego está discriminada e que a criança sente pesar e aflição em momentos de separação. O autor (Bowlby, 2006) ainda afirma que, o luto da criança, caracteriza-se pela tristeza, saudades e recordações persistentes da pessoa morta, de forma que, estas reações são acentuadas em aniversários e datas comemorativas.

A perda estimula nas crianças certos padrões de comportamento e, de maneira geral é acompanhada por uma regressão de etapas e sentimentos, já que, o sofrimento inicial da criança é muito alto. Black (1978 apud Franco, 2008) levanta três razões para isto:

  • O pensamento mágico da criança, que a coloca como causa de todas as coisas, inclusive da morte (do outro, ou da sua própria);
  • As grandes mudanças às quais terá que se adaptar;
  • A dificuldade de conceituar a morte

 

Aguiar (2005) relata em seu estudo, que muitas crianças vivenciam culpa, geralmente com uma mistura desordenada de insegurança, dúvida, autocondenação, autojulgamento e medo. Outra resposta emocional muito comum é a ansiedade tanto relativa à perda de controle sobre seu futuro, quanto em relação a uma separação involuntária. A perda de um mundo seguro e protetor leva a uma vulnerabilidade crescente e ao medo em relação a futuras perdas. Franco (2008) ressalta que há alguns traços encontrados em crianças que são semelhantes àqueles de casos de luto crônico ou ausente em adultos. São eles:

 

  • Ansiedade persistente: medo de outras perdas, medo de morrer também;
  • Esperança de se reunir com o morto: desejo de morrer, comportamento de risco;
  • Culpa persistente
  • Hiperatividade: repentes agressivos e destrutivos
  • Cuidados compulsivos por outras pessoas, com autoconfiança exagerada
  • Sintomas de identificação: acidentes e queixas de problemas de saúde semelhantes ao do morto

 

Como exemplo deste último sintoma, Freud (1923/2006) cita o caso de uma criança que após a morte de seu gato realizou o luto identificando-se totalmente com ele. Disse estar transformada em um gato, andava de quatro e não queria mais sentar-se à mesa. Desta forma anulou magicamente a perda convertendo-se, em sua família, no objeto perdido.

Bowlby (2006) e Franco (2008) ressaltam que, o luto infantil é freqüentemente considerado um fator de predisposição para muitos distúrbios psicológicos na vida adulta, com sintomas que variam desde a excessiva utilização dos serviços de saúde até o aumento do risco de distúrbios psiquiátricos.

 

Aqueles que padecem de distúrbios psiquiátricos – psiconeuróticos, sociopáticos ou psicóticos – manifestam sempre deterioração na capacidade de estabelecer ou manter vínculos afetivos, uma deterioração que com freqüência, é forte e duradoura. (…) Foi sistematicamente apurado que duas síndromes psiquiátricas e duas espécies de sintomas são precedidos de uma elevada incidência de vínculos afetivos desfeitos durante a infância. As síndromes são a personalidade psicopática e a depressão; e os sintomas persistentes, a delinqüência e o suicídio. (Bowlby, 2006, p.101)

 

Segundo os autores, os processos de luto que ocorrem nos primeiros anos de vida são mais suscetíveis do que quando ocorrem na adolescência ou vida adulta, de adotar um curso patológico.

 

A CRIANÇA E A MORTE

Embora 70% dos casos de câncer infantil possam ser curados, nem sempre o prognóstico evolui desta forma. Quando este é fechado, e a realidade de uma melhora é praticamente inexistente, se aplicam os protocolos médicos para a fase terminal e a intensificação dos cuidados paliativos. Nestes momentos, as práticas médicas se voltam para garantir a qualidade de vida do paciente e o alivio de possíveis dificuldades enfrentadas no percurso.

A percepção da morte requer a elaboração do luto e da própria doença. É importante ressaltar que a criança em processo de morte, assim como o adulto, vive o processo de luto antecipatório que segue uma trajetória como qualquer outro luto, envolvendo a angústia de separação das pessoas queridas. A intensidade e elaboração do luto antecipatório nas crianças irão depender dos mesmos motivos e fatores já apresentados anteriormente.

Muitas pessoas, principalmente as quais desenvolvem doenças crônicas, costumam aprender a conhecer seu corpo e passam a monitorar o avanço de seus sintomas físicos, suas alterações de necessidades e efeitos colaterais de medicamentos. De acordo com Aberastury (1984), Raimbault (1979) e Valle (2004), como a crianças tem grande capacidade de observação, capta tudo que acontece ao seu redor, assim, a criança terminal tem consciência de que vai morrer. Bertoia (1993) explica que essa concepção de morte é construída ao longo do adoecimento e segue os seguintes estágios:

 

  • “estou muito doente”;
  • “tenho uma doença que pode matar as pessoas”;
  • “tenho uma doença grave que pode matar as pessoas’;
  • “tenho uma doença grave que pode matar crianças”;
  • “estou morrendo”

 

Raimbault (1979) explica que, para muitas crianças hospitalizadas a morte se encontra logicamente no destino de pessoas doentes que vão para hospitais e não se curam. Através da análise de discursos destas crianças, a condição de hospitalização durante a terminalidade denota um sentido esperado, como algo que elas já sabiam e estão identificadas. A autora (Raimbault, 1979) ainda relata que para muitas, os cuidados que tiveram durante o processo da doença vêm a confirmar a importância que elas têm para os adultos. “É entre aquelas que não têm essa certeza que se manifesta o mais das vezes o desejo de morrer. Esse desejo pode existir nas outras crianças, mas é eliminado pela confiança no amor do outro” (p.37). Assim, a morte é antecipada como uma ausência, e que as faz em um apenas: “Farei falta aos meus pais”.

Aguiar (2005) considera que, nesta fase a criança tenta dividir suas percepções com aqueles que a rodeiam, principalmente com os pais. Porém, muitas vezes, estes não estão preparados ou não conseguem suportar esse tipo de conversa com os próprios filhos. Conseqüentemente, a criança assume o papel de adulto, e tentando confortar aqueles que o cercam, pede que as informações não sejam compartilhadas com os pais, numa tentativa de protegê-los.

Fora do circulo parental, as palavras e pensamentos das crianças só podem ser ouvidas e recolhidas por aqueles que aceitam penetrar nesses pensamentos. Se a criança não encontra ninguém capaz de ir ter com ela um espaço para o dialogo, e se só depara com o silêncio ou a mentira, também se cala e passa a viver em um silencio que prefira a própria morte. Para Raimbault:

 

O silencio é a mascara da condição e da função do moribundo, criança ou adulto, em relação aos desejos dos vivos. Todo dialogo autêntico mostra-se insustentável, ninguém é capaz de ouvir o depoimento do condenado, ninguém pode responder[1]lhe. Ele está condenado a um silencio oficial que prefigura o silêncio de sua própria morte. (Reimbault, 1979, p.18).

 

A criança que não fala vive, por antecipação, um atributo do morto. Romper este círculo de silêncio que se forma em torno da criança enferma pode ser extremamente terapêutico. O diálogo com a criança terminal lhe permite expressar seus medos, fantasias e culpas (Kovács, 1992; Torres, 2002; Aguiar, 2005; Valle & Ramalho, 2008).

Segundo Aberastury (1984), “falar da morte não é criar uma dor ou aumentá-la, ao contrário, a verdade ajuda a criança a elaborar a perda.” (p.129). Quando um adulto não diz a verdade a uma criança sobre a morte, está dificultando seu trabalho de luto. Como exemplo, a autora cita um caso onde há a ocultação da morte de um ente querido da criança. Assim, sendo que o trabalho de luto é a feito através de uma sucessão de esforços, o primeiro e mais fundamental é aceitar que o ser querido não está mais presente. Porém se um grupo familiar começa a ocultar este fato, estas redes de ocultação começam por perturbar as capacidades cognitivas de seus integrantes. A ausência e o sentimento de abandono se fazem mais dolorosos e conflitivos. Neste caso, é comum na pessoa querer seguir o destino do objeto e morrer, para deste modo não se separar. O sintoma na criança consiste em microssuicídios, rejeição de alimentos, ou em transtornos do sono que a levam a uma deterioração física ou psíquica.

À medida que a morte se aproxima, a criança procura defender-se da angústia e do medo, requisitando a presença dos pais mais freqüentemente. Ela regride a estágios primitivos do desenvolvimento e restabelece um vinculo simbiótico com a mãe. Neste momento, elas passam a ficar longas horas no colo da mãe em silêncio (Aguiar 2005; Valle, 2004).

 

Como relatam Valle e Ramalho (2008), diante do sofrimento do filho, e da incapacidade da equipe médica para aliviarem a dor e o sofrimento da criança, muitos pais reúnem forças e aceitam perder o filho, pois vêem na morte, a libertação da criança de tanto sofrimento. Se um pai tem coragem de exprimir esse desejo, é porque não tem dúvida do amor que sente pelo filho. Porém, como explicam as autoras, alguns pais não conseguem suportar a possibilidade de sobreviver ao seu filho, revertendo assim a lei natural, segundo a qual, os pais devem morrer antes dos filhos. As formas com que a morte será lidada, os rituais de passagem e até mesmo o luto, serão influenciados pela cultura e pela sociedade em que a pessoa vive e morre.

 

CONCLUSÃO

Concluindo, mesmo sabendo que a chances de cura do cancêr infantil tratado precocemente são muito positivas, estar preparado emocionalmente e psicologicamente para uma possível retorno é essencial.

Portanto, o processo de elaboração de luto, tanto do individuo que está doente quanto de sua familia, deve ser vivênciado e trabalhado. Independentemente se for uma doença terminal ou um tratamento temporário. E mesmo sendo mais dificil para os pais a aceitação da doença de um filho, vista como não natural, um espaço para escuta e abertura para o dialogo é essencial para a o processo de luto.

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Autores:

Renato Caio Silva Santos

Professor de Psicologia – Universidade Metodista de São Paulo, Brasil Mestre em Ciências e Saúde Pública – FSP USP, Brasil Especialista em Neuropsicologia – Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Brasil Especialista em Sexualidade Humana – Faculdade de Medicina da USP, Brasil Aprimoramento em Psicologia Hospitalar – Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Brasil

Lucas Matheus Gr           izotto Custódio

Psicólogo – FMU-SP, Brasil